sábado, 13 de agosto de 2011

JARDINS DE ASFALTO E AS FLORES DA ESPERANÇA


Há meses, tempo relativamente curto para um historiador que fala de um lugar confortável, assistimos todos horrorizados uma tragédia localizada que dizimou centenas de vidas e chocou o planeta: o tremor de terra e o tsunami no Japão. Uma das grandes potências mundiais foi exposta aos olhos do mundo de maneira mais crua e menos fria, mais humana e menos técnica, menos especulativa, menos financeira.
Como se não fosse suficiente todo o sofrimento de uma verdadeira catástrofe, o risco sempre presente de contaminação radioativa em virtude das fissuras na estrutura da usina de Fukushima, ocasionadas pelas ondas gigantes, foi demonstrando pontos de fraqueza de uma nação que sempre se mostrou imponente por meio de seus prédios de fachadas envidraçadas e de uma economia exemplar. Técnicos e especialistas japoneses tentaram de todo modo conter o superaquecimento dos reatores nucleares e impedir um vazamento de material radioativo, expondo-se ao risco de alterações biológicas.
Ao passo que nosso mundo assistia chocado a toda a sequência de fatos trágicos que ia se desenrolando, eis que um grupo apresentou-se de maneira singela e generosa: os idosos japoneses. Antes de passar adiante, porém, gostaria de pedir pausa ao leitor para mudar o foco de luz e iluminar outro tempo e outros sujeitos. Como apreciador das letras, jamais poderei esquecer o arrepio que percorreu meu corpo quando li pela primeira vez um dos poemas clássicos de um mestre brasileiro: Carlos Drummond de Andrade.
Estava eu parado diante de uma estante de uma biblioteca pública e fiquei minutos a fio lendo os versos de Drummond; foi quando meus olhos se depararam com a representação estética da esperança, que era uma flor que brotava no meio do asfalto de uma avenida movimentada. O poeta mineiro chamou a atenção, creio eu, para o asfalto que ameaçava encobrir o coração humano, às voltas com a Segunda Guerra Mundial; a flor que rasgava a dureza daquele material, contudo, representou muito bem a força do sangue, da vontade humana, da união e da luta contra todo tipo de opressão e violência. O que une as duas pontas lançadas aqui, ou seja, os idosos japoneses já mencionados e a flor “asfáltica” de Drummond?
Com a permissão para construir um clichê, o mundo atual perde a cada dia a essência daquilo que convencionamos chamar de “valores”. A parcela de humanidade fria surpreendeu-se quando os velhos citados acima apresentaram-se voluntariamente para substituir uma nova equipe de jovens que trabalharia na tentativa de resfriar os reatores da usina de Fukushima. A alegação: ao país seria muito mais conveniente preservar as jovens mentes para que o Japão se reerguesse da tragédia que atravessava; os idosos não se recusariam a expor seus corpos já cansados à radioatividade e conseqüentemente a um possível câncer, como se no fundo pensassem que já tinham vivido tudo que poderiam querer.
Ora, qual a diferença entre esses seres humanos experientes e a flor de Drummond? Arrisco dizer que apenas a data. Se no poema publicado na primeira metade do século XX uma flor representa a sobrevivência, a honra, a decência e a beleza, os idosos japoneses são as nossas flores contemporâneas. Eles remetem cada um de nós a um exame de nosso próprio pensamento atual. Isso não se aproxima do papel dos historiadores, que é problematizar, questionar, tornar inquietante aquilo que está estranhamente confortável? Muito daquilo que foi chocante há anos é banalizado em nossos dias ou vice-versa. Por outro lado, nosso cotidiano é fruto de uma relação constante entre passado e presente, esses dois tempos sempre se abraçando como se fossem irmãos – e realmente são. Os historiadores, ao contrário do que muitos que lerem essas linhas devem estar pensando agora que concluíram o texto, não são heróis nem oráculos, mas possuem a capacidade de impulsionar aquela flor da esperança, igual à de Drummond, do fundo da terra para quebrar o asfalto de seu tempo. Nosso tempo é também o do comedimento, do medo e do isolamento; teremos que viver todos aguardando notícias de novos jardins de esperança em meio a avenidas movimentadas para que, a cada uma, possamos acreditar na força do pulsar do sangue humano?

Esse é um texto lindo do amigo historiador: Cairo Bruno.
parabéns pela conquista Cairo. Muito sucesso na sua carreira. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário